Conto

Publicado em: janeiro 10, 2023
Autor: fantasticoseditora

MIA

 

SINOPSE: Mia é uma metafera desejosa de se tornar um membro da guarda real. Todavia, o fato de ser uma fêmea faz com que os costumes de sua terra e da própria família entrem em conflito com sua vontade. Mia terá de lutar como pode para provar que é tão eficiente quanto os machos que lotam o exército do rei, enquanto um mistério assume o vilarejo onde nasceu: o roubo da valiosa coroa da princesa Valy.


 

Durante o voo, vi uma cena que nunca imaginaria.

Cinco estranhos agrediam meu amigo. Eu não o via há tanto tempo e me espantei ao me deparar com a situação. Kurt não deu ares de que desejava se transformar em lobo para se defender. Entrementes, percebi, ao ver as aparências incomuns dos agressores, uns com três braços ou até duas cabeças, que eles não pertenciam ao planeta Odalla. O meu planeta. E estavam longe do vilarejo Vendatte, numa parte isolada do deserto.

Eles avançavam sem se poupar. Kurt levou um forte murro no estômago, cambaleou para trás e vomitou sangue. 

Meu coração deu pulos urgentes. Os indivíduos zombavam, enquanto faziam o que queriam e eu não podia deixar isso continuar. Soltei um rugido antes que pudesse me conter. Todos olharam sobressaltados para cima. Para um tigre voador mergulhando vorazmente na direção deles.

Mordi o ombro de um dos covardes. O arremessei para longe, enquanto três de seus companheiros tentaram me furar com facas ondulares, mas fui mais rápida e os golpeei com minhas unhas. Caíram desorientados na areia. 

Restava um. Logo que olhei para ele, o rapaz, que tinha quatro anteninhas engraçadas saindo da testa, fugiu para além no deserto, onde a areia avermelhava gradativamente. Isso significava que em pouco tempo ele viraria alimento de algum monstro e, ora, seria bem-feito.

Kurt, por sua vez, me olhava numa expressão misteriosa.

Não havia sorriso em sua face. 

— Sério que não está me reconhecendo? — perguntei, achando um absurdo ele esquecer que o tigre que o salvou era sua melhor amiga.

Eu não estava com muita paciência. Fiz minhas asas reduzirem seu tamanho e senti o habitual desconforto nas costas de quando eu mudava de forma. Meus ossos estalaram e rangeram ao se modificar. Contemplei minha pelugem desaparecendo. E quando meu tamanho diminuiu, senti uma leve vertigem. No fim de tudo, passei as mãos nos cabelos e em meu bumbum, percebendo entre os dedos minhas orelhas de tigre. Depois, minha cauda. 

O que parecia um sorriso, tremulou na face atônita de Kurt. Tanto meu rosto verdadeiro quanto meu corpo cheio de cicatrizes estavam por inteiro à mostra para ele.

E então? — dei uma pressionada. Fiquei “dançando” para não queimar a sola dos meus pés na areia desértica.

— Deuses… — ele balbuciou, e agora estava sorrindo de fato. — Está tão grande e forte. Você é aquela mesma Mia?

— Lógico!

— Mia de Kall’mon?!

— Sim, seu bobo, sou eu! – exclamei feliz, enquanto pulava.

— M-mas você não estava…? Você não…?

— Sim, estava, mas podemos conversar a caminho do vilarejo? – cortei-o, sem poder resistir mais. 

 

 

Pousei logo que vi o arco de pedra que dava para onde nasci: o vilarejo Vendatte. Kurt agradeceu pela carona e pulou de minhas costas, passando a caminhar ao meu lado. Contava-me que os mau encarados que o atacaram eram assaltantes e, como ele não tinha nada de valor, ficaram furiosos. Explicou que não queria machucá-los, apesar de merecerem, e eu senti uma onda de ternura me invadir, ao ouvir isso. 

Kurt sempre fora bondoso desde quando éramos crianças. Ele era o mais baixo da turma, o mais inocente, era magrinho, e quando raras vezes ladrava, nunca mordia. Naquele instante, contudo, era um rapaz alto, musculoso… mas sua essência permaneceu e gostei disso. Seus olhos eram puxados, a cauda e as orelhas eram cobertas com pêlos cinza-claro. Kurt Grey era da família dos lobos cinzentos.

Meus pais sempre disseram que um dia esse meu amigo e eu iríamos nos casar; ter muitos filhotes. Eu só fazia rir todas as vezes que me lembrava dessa bobagem. Kurt e eu sabíamos que meu coração já pertencia a alguém.

 

Havia um par de guardas a serviço do rei postados nos cantos do arco de pedra que separava o vilarejo onde nasci do caminho que levava ao inóspito deserto que ficou para trás. Os guardas usavam máscaras de feições leoninas e roupas de couro resistente. Seus elmos tinham orelhas triangulares no alto. Vestiam roupas vermelhas por baixo da proteção e se viam armados com varas elétricas. Para minha surpresa, eles nos impediram de seguir em frente.

— Identifiquem-se — pediu um deles. 

Kurt mostrou seu registro civil: um pergaminho contendo suas informações, bem como a do reino que pertencia. Havia um leão no final da página, o símbolo que oficializava o documento naquele continente. Então o liberaram.

Senti um frio na barriga.

Obrigaram-me a voltar à forma natural – sobre duas pernas – e eu não pude negar; sabia que nos últimos tempos todo o continente Savah estava sob a mesma vigilância. 

Para o meu azar, sem vestes ou bagagens, era fácil deduzir que eu não tinha nada do que eles queriam ver. Graças a isso, os guardas quiseram me deter, o que me deixou tensa. Felizmente, Kurt se pôs em meu auxílio. 

— Senhores, por favor, minha amiga está voltando hoje de viagem, ela é moradora daqui – contava ele, se esforçando para manter a calma. — Ela se chama Mia de Kall’mon, da família dos tigres amarelos, são tradicionais, no vilarejo.

Os guardas analisaram minhas orelhas ante a nova informação. 

— Hum…— fez um deles, quando viu minha cauda. — É, acho que confere, sim. Ela é quem o rapaz está dizendo. É filha daquele comerciante. Desculpem o transtorno, mas se quer um conselho, Kall’mon, arrume um novo documento, ou numa próxima revista, pode ser que não tenha tanta sorte!

 

— Pelos deuses, Mia, ele está certo! — reclamou meu amigo, quando nos víamos há vários passos longe dos guardas. Kurt estava suando de nervoso. — Onde está o seu registro? Aliás, cadê todas as suas coisas? Você não saiu daqui sem nada.

— Me perdoe — suspirei. — Perdi muito do que levei comigo enquanto estive fora, e nunca imaginei que ia passar por uma situação dessas quando voltasse. — Passei o braço carinhosamente em torno da cintura dele, enquanto caminhávamos. — Me desculpa?

Ele sorriu complacente para mim e beijou o alto da minha cabeça.

— Olha, vamos deixar isso pra lá. Falemos do seu retorno, que é bem melhor. Afinal, ainda não me disse o que a fez decidir voltar.

Abri um amplo sorriso.

— Falei sim, antes de ir embora. Disse que só retornaria quando estivesse forte o suficiente para lutar pelo meu sonho, e eu consegui – empinei o nariz, toda orgulhosa. — Como a competição para o cargo de guarda real irá começar daqui há alguns dias, voltei ligeira!

Ele titubeou.

— O que foi? — perguntei.

— Mia, você sabe que as fêmeas não podem se inscrever.

— Aham.

— E seus pais não vão ficar nada contentes em saber que você ainda está pensando nisso.

Não respondi.

Kurt estava certo. Meus pais não apoiavam o meu sonho, por terem uma visão diferente do que uma fêmea deve ou não fazer ao atingir a maturidade. Boa parte do mundo certamente partilharia da mesma visão dos meus pais, porque “as coisas” sempre foram assim.

Evitei pensar nisso, enquanto ainda não estava em casa. Kurt e eu então chegamos a zona comercial do vilarejo Vendatte. As barracas de vendas eram tantas, que as residências ficavam ocultas atrás delas e da poeira densa que vinha do solo e se concentrava acima das cabeças dos vagantes. Nada havia mudado. 

Raças variadas de muitos lados da galáxia aparecem, compram, e às vezes até vendem acessórios por aqui: armaduras usadas, espadas de segunda mão, livros antigos de encantamentos…

O único fator esquisito era que não estava tão cheio. Será que o último acontecimento impulsionou o rei a ser mais restrito? Porque isso explicaria o modo intenso que os guardas estavam agindo: coisa que não era comum.

“Eu soube que ainda não encontraram a coroa”, dizia um estranho que passava por mim.

“Estão falando pela cidade que há uma recompensa para quem encontrá-la”, comentava uma moça.

“Mas Maria, e se a coroa já estiver fora do planeta? Toda essa precaução pode estar sendo em vão.”

— Parece que o negócio é sério — comentei intrigada.

— Não sei por quê tanta euforia — Kurt respondeu, razoável. – Digo, é só uma coroa, não é? Tudo bem que ela vale mais que nossa vida, mas o rei precisava mesmo mobilizar o continente inteiro por causa dela?

— Você mesmo acabou de dizer que a coroa vale mais que a nossa vida. Além do mais, foi presente do rei para a princesa num momento muito importante. Não sei como não fecharam as fronteiras ainda.

— Faria parecer que estamos numa guerra. Ademais, a princesa nunca usa aquele negócio, isso não é frustrante pra você?

— Bom, sim — admiti.

— Mas vendo pelo lado bom, foi como você disse, a competição para quem quer se tornar um guarda real já está chegando.

Enruguei as sobrancelhas. 

— Mas o que uma coisa tem a ver com a outra?

— Ninguém que está a serviço do rei encontrou a coroa ainda e isso inclui os guardas reais. Modéstia à parte, creio que já teríamos cumprido o dever de encontrar o que eles procuram. Ainda mais se trabalhássemos em nome do rei ou da princesa, porque seria um baita incentivo. Pelo menos, pra você, não?

Senti meu rosto corar, com aquele acréscimo. Entregar algo tão importante assim, nas mãos dela… ver bem de perto a felicidade cintilando grata naqueles olhos perfeitos… minha mente só fazia viajar na impossível situação, enquanto Kurt e eu entrávamos em um caminho apertado entre uma tenda e outra. 

Passamos em frente a residências de arquitetura vernacular, erguidas com tijolos de barro seco. Seus interiores dividiam-se em no máximo dois quartos, um banheiro, uma cozinha e uma sala. As janelas eram pequenas e circulares e a cor desértica era predominante tanto por dentro quanto por fora das propriedades.

Agora que eu estava de volta, não sabia o que esperar. Dos meus pais, principalmente. Eles foram contra a minha partida, em especial quando anunciei o motivo dela. Haviam se aborrecido feio, comigo. 

Seria muita ingenuidade pensar que isso foi esquecido? Eu estava meio nervosa quando parei diante da minha antiga porta. Não fosse Kurt me encorajar a bater, eu teria ficado ali feito uma estátua até alguém aparecer. 

Uma senhora meio compacta, gorducha e de óculos, me atendeu um minuto depois que bati.

— Por Savina! — exclamou minha mãe, impactada. — Sempre cri que nossa deusa traria você de volta, minha filha.

Ela me abraçou com força e eu senti tanta falta desse abraço, apesar de tantos desentendimentos. Meu pai veio logo atrás, com sua voz rabugenta: “quem é que está na porta, Abigail? Diga que não compraremos nada!”, e parou de chofre ao ver minha imagem à porta.

— Não acredito — ele falou, quase sem conseguir. — É você?

— Sim, pai! — sorri, contente.

— Mas… —  Ele se interrompeu. Franziu ligeiramente a testa ao olhar para o meu corpo nu. — Filha, onde estão suas roupas? E suas bagagens?! Você não saiu daqui com pouca coisa.

— Oh, pelos deuses, Linnard, deixe a menina entrar. Venha, minha menina, venha! Entre você também, Kurt, é sempre bem-vindo em nossa casa!

Mais uma vez no interior do meu antigo lar, deixei o conforto me invadir. Tomei um banho, apreciando cada gota de água sobre mim. Em seguida, peguei emprestada uma camisola da minha mãe para vestir. 

Falei aos meus pai que logo mais explicaria o motivo de eu não ter trazido de volta nada do que levei embora: roupas, calçados, meu registro, etc. Para ser franca, eu estava era reunindo coragem para entrar no assunto. Eu não pude evitar isso por muito tempo, quando meu pai indagou durante o jantar o que eu havia feito enquanto estive longe. 

O “x” da questão, é que ele já sabia. Em nossa despedida, deixei bem claro o meu objetivo e os riscos de lutar por ele. Mas agora, pelo seu modo de falar e agir, era como se ele “não quisesse” acreditar.

— Bem, bem, o mais importante, é que agora você está de volta — resmungou ele. — Aliás, sua mãe quer lhe dizer algo importante. Não é mesmo, Abigail?

— Sim — Minha mãe se endireitou na cadeira, um sorriso fofo erguendo suas bochechas. — Minha querida, abriram ontem as inscrições para condutora de carruagens! Não é uma notícia incrível?

Gemi. Esse é o tipo de profissão que a maioria das fêmeas que finalmente se transformam em feras aladas deveria seguir, neste continente. No entanto, meu objetivo não era aquele e eles sabiam

Isso me irritou um pouco.

— O que foi? — perguntou minha mãe, receosa. — Você não quer?

Kurt se retraiu onde estava. O rumo do assunto estava perigoso e certamente ele podia sentir.

— Vocês não deram importância ao que falei sobre eu ter ido embora pra me fortalecer e os riscos que corri, pra isso. Não quero ser grossa, mas eu não voltei pra casa pra jogar tudo pro alto e ficar puxando carruagem. Continuo querendo ser parte da guarda real.

Meus pais se entreolharam e a atmosfera em volta pesou drasticamente. As orelhas do meu pai ficaram tensas de modo semelhante aos seus olhos felinos. Senti minha cauda se arrepiar.

— Então você continua com essas ideias escandalosas? — rosnou ele, batendo o talher na mesa. — Continua querendo fazer a família passar vergonha? Vamos, fale, foi pra isso que voltou?!

Abismada, eu não consegui responder.

 

 

Meus pais passaram a ficar esquivos e muito quietos, depois que terminamos o jantar de reencontro. E depois que amanheceu, até o momento no qual decidi sair para dar uma volta pela Cidade das Pedras, eles murmuravam entre si. Falavam comigo somente o essencial.

Longe de mim odiá-los por conta disso. De algum jeito, eu já estava acostumada com esse tipo de situação. “E você sabia melhor do que ninguém que o desentendimento tinha chance de acontecer”, me acusei em pensamentos.

Linnard e Abigail de Kall’mon não eram pessoas ruins. O único problema era o apego que eles (e o resto do mundo) tinham a um sistema que precisava ser mudado. Ou será que eu estava errada em querer decidir sozinha o que vou fazer do meu futuro, contrariando anos de uma ferrenha tradição?

Distraí-me dos meus devaneios quando passei diante de uma enorme casa de pedra em forma de taça. A posterior, parecia um barril. As construções ficavam cada vez mais diversificadas e isso me prendeu. Era impossível não se encantar com a Cidade das Pedras. O arquiteto que a projetou idealizou cada casa com um diferencial, tornando o lugar por onde eu andava o ponto turístico das redondezas. 

No entanto, quem passava até cinco minutos dentro de qualquer loja à minha volta, descobria logo que o custo de vida dentro da cidade era muito mais caro do que em Vendatte: onde viviam os menos favorecidos.

Eu só era íntima de uma fêmea nesse lugar elegante, esta, pertencente à uma família nobre de ursos-pardo: Úrsula Bellin. Numa ideia relâmpago, pensei em ir visitá-la, para matar a saudade e obviamente espairecer um pouco. 

Acabou não sendo necessário.

Esquadrinhei duas pessoas vindo ao meu encontro. Uma delas era o Kurt, que abriu um sorriso quando me viu. E a outra, uma garota de aproximados dezenove anos como eu. Porém, baixinha e gordinha, lembrava um pouco minha mãe. Era a Úrsula.

Minha amiga tinha orelhas redondas, peludas e pardas, no alto de seus cabelos castanhos. Ela entreabriu a boca quando me viu. Provavelmente eu fazia a mesma cara de tonta, quando disparei para abraçá-la. Um reencontro feliz.

Kurt, Úrsula e eu ficamos horas conversando. Kurt havia chamado Úrsula no intuito de me fazer esquecer a noite anterior e conseguira. Ela me apoiou quando eu falei dos meus planos para dali há alguns dias, ante a competição: “eu sei que você vai se dar bem”.

Úrsula sempre foi muito parceira comigo. Quando havia confusão e, acredite, sempre nos metemos em encrencas quando mais novas, Úrsula era o alvo principal dos ataques. Kurt sempre se levantava para defendê-la, e eu sempre surgia na base do rugido e da força bruta para proteger os dois – modéstia à parte, eu ainda nem me transformava na época e já metia medo em quem quisesse se meter com os meus.

— Eu tenho uma coisa pra contar pra você, amiga — disse Úrsula, em baixo tom de voz. Estava eufórica. — Acredite se quiser, mas… consegui me transformar em um urso alado recentemente e sem precisar receber aquelas chicotadas.

Comecei a rir. Contudo, ao olhar de Úrsula para Kurt e notar a expressão séria dos dois, a risada findou.

— Não estão brincando comigo?

— Não há por que mentir — respondeu Kurt e virou-se para Úrsula. — Mostra os braços e as pernas ou Mia vai pensar que estamos curtindo com ela.

Foi o que minha amiga fez ao arregaçar as vestes. Não havia cicatriz. Nenhuma ferida. Eu fiquei pasma, feliz, e curiosa, ao mesmo tempo.

— Mas nenhuma fêmea se transforma sem os açoites — a frase basicamente pulou da minha boca. — Como que…?

Os dois sacudiram a cabeça, indicando que também não sabiam como isso aconteceu. Claro que estávamos felizes, mas era surpreendente, não dava para negar. O que aconteceria se de repente o universo inteiro soubesse que os pais da minha amiga não precisaram dar com um chicote em seu corpo, para forçar uma transformação? 

Meu corpo se arrepiava só de lembrar. As fêmeas sempre sofreram muito no meu mundo e os açoites às vezes eram um ponto mínimo a ser considerado. Quantas e quantas vezes já não fomos esmurradas até ficar à beira da morte pelo simples fato de que precisávamos “evoluir”, segundo era a opinião dos machos?

Abanei a cabeça.

O momento não era de divagar, mas sim de pensar no desafio que viria. A chance que tive em poder lutar para ser o que eu desejava. Era hora de colocar tudo o que aprendi em prática.

 

 

O momento da grande seleção chegou com um sol forte queimando a cabeça de todos. Não consegui dormir direito de tão apreensiva e animada. Meus pais passaram a última semana tentando me fazer desistir das minhas “ideias rebeldes”, mas não tiveram êxito. 

Pelo menos, se propuseram a ir me assistir. Estavam preocupados com sua única filha prestes a entrar numa disputa cheia de raças desconhecidas e perigosas. Kurt me marcou como macho numa ficha de inscrição. Ele trabalhava no castelo, então foi fácil para meu amigo me ajudar a burlar a parte burocrática. 

Vesti uma armadura que deixasse minha feminilidade ocultada ao máximo. Úrsula desejou boa sorte a mim e ao Kurt umas quinze vezes antes de irmos para o meio dos competidores.

Kurt sempre quis ser um guarda real. Não por sua vontade, mas para orgulhar ao pai. Tentava pelo terceiro ano consecutivo, mas não era culpa dele não ter conseguido ainda. Acontece que os mais fortes se enfrentavam nessa seleção, o que tornava tudo muito mais difícil. Apertei a mão dele com firmeza: “faça o seu melhor”, o encorajei.

Grades se levantaram das quatro paredes dos lados da arena e competidores surgiram dali fazendo grande algazarra. Uma avalanche de gritos de aprovação se elevou da plateia em torno. 

O rei Swancraster, um macho de juba desgrenhada e vermelha, estava ao lado de sua rainha e de seu conselheiro. A princesa se encontrava mais a frente, ao lado de suas encantadoras camareiras. Todas com os peitos de fora, mas somente os pequenos seios da princesa foram o meu foco. Eram delicados e fartos. Quando senti que ruborizava, desviei meu olhar. A contemplaria por mais tempo quando merecesse, quando a vitória estivesse comigo.

A luta começou.

Vários guerreiros se atiraram mortalmente uns sobre os outros, pelo título honroso que cobiçavam. O rei estava atento a cada movimento nosso. Mordidas, socos, chutes… golpes com a cauda, cabeçadas…

Tudo acontecia muito rápido. Eu estava acostumada com um aglomerado de inimigos vindo para cima. Vivi situações parecidas, enquanto estive fora. Em razão disso, agi com base em minha experiência. Porém, tentei ao máximo executar minhas ofensivas sobre duas pernas. 

Se eu me transformasse, acabaria revelando meu sexo, visto que entre metaferas, apenas fêmeas podem ocasionalmente desenvolver pares de asas em suas transformações. E mesmo que eu me transformasse, todos me veriam como vim ao mundo assim que eu voltasse ao normal. 

Em Odalla, a nudez não é proibida ou ofensiva, como em outros planetas que se tem notícia. O pormenor era apenas um: nasci uma fêmea. Ou seja, eu não era para estar ali. Mas eu tinha um plano e continuei dando tudo de mim para realizá-lo e mostrar que era tão capaz quanto qualquer macho idiota.

Acelerei meus golpes. Consegui derrotar por volta de cinco guerreiros de uma só vez com uma técnica de espada que aprendi a realizar em meus treinos longe do vilarejo. 

O movimento consistia em eu pular e dar um giro com a espada em punho, cortando quem estivesse por perto ou avançasse abruptamente. A multidão foi à loucura quando fiz isso.

Melhor ainda foi quando um dos favoritos a vencer a competição avançou contra mim. Ele usava um machado e era imenso a um nível bárbaro. Mas para sua desgraça, o tamanho dele não me intimidou. 

Outro detalhe essencial que aprendi depois que parti do meu lar, foi que a fraqueza dos grandes guerreiros estava nas pernas. Portanto, quando ele chegou bem perto, mergulhei com tudo no chão. A velocidade dele não era tão boa para me impedir de realizar a próxima ação. Rolei para longe de suas mãos e cortei fora a sua perna onde a armadura não o protegia, na parte de trás do joelho esquerdo.

O gigante deu um grito de arrepiar os pelos. Seu sangue jorrou. No instante seguinte, a plateia foi à loucura e eu também fiquei feliz com essa manifestação. Contudo, me distraí com o sentimento. Bastou o golpe surpresa das garras de um leopardo, para que minha armadura, que era bem barata, fosse destruída. Ouvi com clareza quando toda a plateia se levantou estarrecida, prendendo a respiração, ao mirar meus traços femininos.

O rei também se pôs de pé, me fulminando com os olhos. Depois, a rainha, cobrindo a boca com as mãos. A princesa Valy me observava também. Eu não conseguia decifrar seu olhar para mim, mas senti vontade de chorar. 

Todos os combatentes também cessaram suas lutas para me encarar e eu não entendia. Entre tantos, eu e mais seis, éramos os únicos inteiros numa arena que comportou sessenta e sete lutadores, a maioria já nocauteada. 

Mesmo assim, guardas vinham depressa pelas laterais, mirando uma criminosa que precisava ser detida.

 

 

Eu tremia de frio, enquanto jogada no chão. Prenderam-me com algemas anti-magia. Em outras palavras, eu não poderia me transformar para escapar, se tivesse intenção. 

Minutos infinitos se arrastavam e a lembrança do que houve me alfinetava a cada instante. Na minha cabeça, meu plano era tão perfeito. Eu revelaria quem sou no finalzinho de tudo. Quando eu fosse a campeã. Teoricamente, os grandes veriam o que uma fêmea fora capaz de fazer na arena e a aceitariam ao invés de puni-la. 

Acabou que eu fantasiei demais, no final das contas. Ouvia claramente a voz revoltada do meu pai, agora que eu estava imersa no meu fracasso: “continua querendo fazer a família passar vergonha?!”

Bem… agora, ele tinha sua resposta.

Uma lágrima escorreu do meu olho direito. Toda a autoconfiança que tive até o momento da competição foi se esvaindo do meu interior. Eu já não era a Mia de Kall’mon obstinada a mostrar a que veio.

Então, minhas orelhas se levantaram. Apoiei-me sobre as mãos e os joelhos e engatinhei o máximo que as correntes permitiam em direção às barras de contenção. Alguém se aproximava. Uma luz estava chegando. 

Fiquei de pé. Ainda me restava um pouco de dignidade para não deixar que me vissem tão derrotada, embora a situação que eu me encontrava não deixasse margem para dúvidas.

Uma fêmea apareceu. 

Alguém que eu com certeza não esperava.

Milhares de sensações me invadiram quando a figura mais bela daquele reino abriu as grades e se pôs bem na minha frente. Os cabelos longos e vermelhos da princesa Valy caíam por suas costas. Ela usava um elegante vestido branco que era translúcido o bastante para eu esquecer por um breve momento o que era respirar.

— Por que você fez aquilo? — Valy perguntou suavemente. — Acabou mexendo com muita gente, foi uma atitude… ousada.

Pensei estar sorrindo, quando ela terminou de falar. Valy estava séria, mas ao mesmo tempo sua voz era tão doce. E não havia crítica em sua voz. Isso fez com que minha sinceridade saísse natural e sem medo.

A princesa me escutou pacientemente. Tive a impressão de estar mais vermelha do que os cabelos dela, quando terminei. Como eu conseguia cair tão fácil em seus encantos, mesmo estando numa situação tão ruim?

Valy sorriu para mim.

— Há verdade em seu olhar — ela disse, me mostrando uma chave preta. — Pode acreditar quando digo que seus talentos foram apreciados. Pelo menos, por mim. E talvez eu consiga livrá-la de ficar aqui, se me fizer um favor, Mia de Kall’mon.

Pelos deuses, ela disse meu nome!

— Me peça qualquer coisa — soltei, sem precisar pensar. 

Ela pareceu satisfeita ao ouvir isso.

Consequentemente, pude sentir aos poucos a Mia que eu sempre fui, reassumindo o seu lugar.

 

O castelo do rei foi construído sobre uma enorme rocha que flutuava muitos e muitos metros acima da Cidade das Pedras. Para se chegar lá ou deixá-lo, era necessário entrar em uma carruagem conduzida por uma fêmea enquanto fera voadora. Foi desconfortável fazer deste o meio de transporte para me conduzir de volta a cidade, mas era ilegal voar de outro modo, por aqui.

Pousei depois de uns quinze minutos e a imagem de Kurt imediatamente me veio à memória. Apesar de eu estar incumbida de realizar uma tarefa, agindo mais em prol da satisfação da princesa do que da minha liberdade, não pude deixar de me preocupar com meu amigo.

Eu não duvidava de que ele estava tendo problemas com o pai, por não ter tido uma boa desenvoltura na arena e isso me preocupou. Uma vez, já presenciei o quão cruel o pai de Kurt poderia ser; só de me lembrar, os cabelos da minha nuca eriçaram. 

Corri até a casa dos Grey; vi o lobo alfa conversando com Úrsula, na porta de casa. Pelos gestos e expressões, ele parecia muito alterado. Esperei em um canto, tensa, até que os dois terminassem. 

Quando chamei Úrsula, ela veio correndo em minha direção; quase fui sufocada em um abraço cheio de ternura e também angústia. Perguntas do tipo: “como foi que você deixou a prisão?”, e “o que fizeram com você?”, “você está bem?!”, se atropelavam em sua boca.

Úrsula contou que o Sr. e a Sra. Grey, não sabiam onde Kurt estava desde que as lutas se encerraram. Kurt nunca foi de sair sem dar notícias. Mas, pensando bem, ele podia estar escondido do pai.

Então me despedi de Úrsula o mais rápido que consegui. Passei em frente a minha casa, mas não parei. Olhei para todos os lados, a procura do meu amigo. A princesa certamente poderia esperar um pouco mais. Meus pensamentos me condenavam: “não acredito que a princesa não é mais a prioridade máxima.”

Foi difícil ignorar esse fator. Gritei por Kurt. Às vezes, batia de porta em porta. Cheguei a descrever às pessoas como que ele era aparentemente, até que alguém me chamou atenção e eu parei para observar. Não era das redondezas e mesmo assim não me era estranho. 

Fiquei um tempo estudando-o até me lembrar de que aquele era um dos assaltantes que atacaram Kurt, no outro dia.

Estranho. 

Eu podia jurar que esse sujeito, com anteninhas saindo de sua testa, já tinha sido devorado, pela direção que tomou quando fugiu de mim. Meu cérebro subitamente começou a trabalhar em alta velocidade. Primeiro, Kurt desapareceu. E agora, esse sujeito apareceu. E como eu havia ajudado o Kurt, agora querem vingança contra ele. 

Ou já haviam conseguido.

Meu sangue ferveu. Deixei minha fera interior se apossar das minhas ações e pulei sobre o alienigena, derrubando-o no chão. Curiosos paravam para observar enquanto eu rosnava para o bandido: “se não quiser que eu me transforme e arranque a sua cabeça, acho melhor dizer o que fez com o Kurt!”

— Você é aquele tigre de antes — ele franziu a testa. — Vi você na seleção. Achei que estivesse presa!

— Eu poderia denunciar você e os seus amigos ladrões por agressão, aí veríamos quem ficaria atrás das grades!

Escute aqui, felina medíocre, sou alguém a serviço do rei, assim como os outros caras que você atacou! Não somos ladrões, estávamos sem nossos uniformes pra não chamar atenção! Você sim, poderia ter sido denunciada por nos atrapalhar. O seu amigo estava zanzando próximo às areias vermelhas, naquela vez. Nós o abordamos e ele ficou bem nervoso. Diria até que estava quase soltando a verdade, quando você apareceu!

— Pare de dizer coisas sem sentido, é melhor me contar o que quero saber! — tornei a exigir, depois que o arrastei para trás de uma casa desabitada, longe dos olhares bisbilhoteiros. — O que vocês fizeram com o Kurt?!

— Nada! — rugiu de volta o sujeito. — Me solte, vamos!

— Como foi que você sobreviveu aos monstros da areia vermelha?!

— Achou mesmo que fui tão longe?! Apenas me distanciei um pouco. Pensei que você fosse alguém interpretando errado o que via, daí esperei que você saísse de perto daquele lobo, mas você não o fez!

— Ele é meu amigo!

— Seu amigo é suspeito de ter roubado a coroa!

Quê?!

— Decidi ficar um tempo à espreita, para dar uma falsa sensação de segurança pro seu amigo — continuou ele, tentando em vão se libertar da pressão de minhas mãos. — Nós continuamos vigiando-o, esperando-o vacilar.

— E não encontrou evidências do crime, não é? — sorri audaciosa.

— Não, mas ele trabalha como ferreiro no castelo Swancraster e foi o único a começar a faltar o trabalho logo após o desaparecimento da coroa, o que queria que pensássemos? O rei percebeu isso. Até permitiu que Kurt Grey participasse da seleção, só para observá-lo.

Soltei-o, irritada. 

— Isso não prova droga nenhuma, o Kurt não é um criminoso e eu vou provar. Encontrarei essa coroa e o verdadeiro culpado!

— E o que, em nome dos deuses, você poderia fazer?! O nosso maior suspeito não aparece desde o fim da competição. Ele não deixou Vendatte ou os guardas saberiam. Por isso, sei que ele ainda vai dar as caras, e quando isso acontecer, farei ele confessar!

Ele virou as costas para mim e saiu andando; desapareceu no meio dos transeuntes, me deixando envolvida em tudo o que ouvi. 

Sim, eu estava convicta da inocência do Kurt. Colocaria minhas mãos no fogo por ele. Entretanto, havia algo me incomodando demais. A cada segundo a grosseira imagem do lobo alfa, o pai cruel do meu amigo, aparecia em minha mente. Esse lobo velho sempre fez de tudo para se dar bem, como todo macho com mania de grandeza. E aí, pensei: “ele iria tão longe a ponto de obrigar o próprio filho a roubar a coroa?”

Senti uma fisgada no peito.

Tive a sensação de que era preciso fazer um desvio de rota.

Voltei por todo o caminho que fiz. Levei um tempo até estar de volta à Cidade das Pedras; cruzei esquinas e fui surpreendida por alguns becos sem saída, pois fazia mais de três anos que eu não visitava o lado leste da cidade e esqueci bastante coisa.

Parei como quem não quer nada em frente à uma construção cônica de pedra: a antiga loja de armamentos (último tipo), cujos donos eram o Sr. e a Sra. Bellin, os pais da Úrsula.

Na época em que fora aberta, a loja rendeu tanto que ficou pequena demais para grandes negócios. Como consequência, os Bellin levaram tudo o que comercializavam para um novo local. 

Úrsula e eu aproveitamos disso para trazer Kurt à loja vazia, a fim de protegê-lo do pai. Era um esconderijo no meio dos ricos. Acima de qualquer suspeita. Um tipo diferente de clube só para nós. O lugar onde confessamos nossos segredos mais profundos e falamos sobre tudo.

Dei três toques na parede de pedra. Uma porta mágica surgiu e se abriu, permitindo a minha entrada. A loja era muito maior por dentro. Havia estantes empoeiradas, ganchos, correias velhas, um punhal de espada largado no chão… mas o que eu queria estava atrás de um balcão caindo aos pedaços: a passagem para o subterrâneo. 

Uma portinha quadrada aos meus pés, meio descoberta por um tapete que um dia foi verde, estava entreaberta. Alguém já havia chegado antes de mim. Ótimo. 

“Como não pensei neste lugar antes?”

Agachei e fui descendo por escadinhas até onde o grosso das mercadorias era estocado, antigamente. 

Ouvi vozes.

“Ele está furioso, não está?”, Kurt perguntava, a voz embargada.

“Sim”, respondia Úrsula, a voz receosa. “Tem certeza de que quer continuar com isso?”

— Querer eu não quero, mas nada mais importa. E é a nossa chance de… — ele se interrompeu ao farejar algo no ar. Virou-se abruptamente para onde eu estava — Mia?!

Os olhos dos meus dois amigos ficaram arregalados e fixados nos meus. Não, eu não espreitava. Não achava que havia necessidade e eu não enganaria o faro de um lobo, se tentasse.

Havia um objeto adornado por pedrinhas brilhantes nas mãos de Kurt. Eu não conhecia a coroa roubada. Nunca a tinha visto, mas algo me dizia que era ela.

— Mia, não é o que parece — adiantou-se Kurt na defensiva.

— Foi ideia do seu pai, não foi? — perguntei pausadamente..

— O que? — ele franziu o cenho. — Bom, parece mesmo ideia dele, né? Mas não. De todo jeito, isso não tem nada a ver com você.

— Realmente — respondi, com um meneio de cabeça. — Não tem a ver com nenhum de nós. Por quê você está com essa coroa, Kurt?!

— Hum, Mia, não tem só ele aqui — interpôs Úrsula, hesitante. — Eu envolvi Kurt nisso. O plano de roubar a coroa foi meu.

Por um momento, fiquei sem conseguir reagir.

— Não está falando sério — balbuciei.

— Estou sim. Diferente de você, eu sempre quis ser uma condutora. Fiquei realmente feliz quando um lindo par de asas apareceu depois que me transformei. Só que o corpo dos ursos é pesado demais. Quando tentei voar, só o que consegui foi me estabacar no chão. Minha mãe também sempre quis ser condutora, mas suas asas nunca desenvolveram. Por isso, eu quis fazer o meu melhor por ela. Mas é óbvio que eu fracassei.

“Daí, antes de você voltar para o vilarejo, eu pedi a Kurt que me explicasse como andar pelo castelo. Depois, fui até lá com uma caixa mágica de pedra para presentear a princesa com flores do deserto. A partir disso, foi fácil entrar escondida no quarto dela e pôr a coroa dentro da caixa. Quem suspeitaria de uma ursa gorda? Claro, também foi sorte a maior parte dos guardas estarem ocupados.”

— Ah, claro, e vocês acham que roubar do rei é uma atitude que concede asas maiores? — minha voz soou chocada demais até para mim.

— Mia, nem todos conseguem lutar tão bem por um ideal, como você — Úrsula respondeu com melancolia. — Kurt e eu sempre te invejamos por isso. Meus pais passaram a ficar distantes de mim, desde o fracasso do voo. Uma vez eu estava desabafando sobre isso com Kurt. Ele me entendeu e concordou em me ajudar. Mesmo porque, ele também queria, pelo menos um dia, ouvir algo de bom dos pais dele.” 

“Kurt não teve um bom rendimento na luta da seleção e o pai dele já o humilhava bastante sem isso. Fui à casa do Kurt para saber se o Sr. Grey estava dando falta do filho, antes um pouco de te encontrar. O pai dele disse que não fazia ideia de onde estava sua cria e tampouco queria saber de um filho derrotado.”

Úrsula aos poucos foi ficando com o rosto manchado pelas lágrimas. Kurt ainda me olhava com seriedade.

— Não pense errado ao nosso respeito — pediu ele. — Só o que queremos é levar a coroa até o castelo como se a tivéssemos encontrado por acaso e aí ter pelo menos um reconhecimento de nosso rei. Essa é a medida que precisávamos tomar, ainda que não haja nobreza nesse ato.

“Meu pai sempre quis que eu fosse o mais forte. Eu deveria ser o próximo macho alfa da família, um guerreiro temível, mas desde criança, nunca fui de brigar e meu pai sempre custou a me aceitar como filho por causa disso. Discussões… humilhação… rejeição… Úrsula e eu não queremos mais viver esse tipo de coisa, Mia. Cansamos. E se tivermos o agradecimento do rei, teremos chance de ser valorizados.”

Houve um silêncio. Eu não sabia como me sentia naquele momento. Sempre achei que se não tivéssemos de nos adequar às exigências daqueles que nos cercam, sobraria espaço para sermos felizes como somos. O que eu poderia dizer? 

Que interessante… — disse alguém de repente atrás de mim. 

Saltei instintivamente para perto dos meus amigos com um rosnado. Meus pelos se arrepiaram e minhas garras ficaram de fora. 

Kurt e Úrsula estavam em choque. Era o alienígena de antes, com um sorriso enviesado na face. A conversa tensa havia cegado nossos sentidos. Ele se dirigiu a mim num tom provocativo: 

— Eu imaginava que você escondia a verdade, bichana. Finalmente tudo será esclarecido!

 

 

Quisera eu que o alienígena que aparentemente me seguiu até a loja, nos tivesse levado até o rei de forma pacífica. Zaluck, como ele se apresentou a nós, quis açoitar Kurt enquanto o obrigava a repetir todo o plano “vigarista” que meu amigo preparou antes com sua cúmplice.

Ele me impediu de agir quando quase me transformei para tentar pará-lo: “vai mesmo me enfrentar depois de ser flagrada acobertando esses ladrões?!”

Deuses! 

Nunca na vida senti tanto ódio. Eu não estava acobertando ninguém! Mas Zaluck já havia nos marcado como culpados e não parava de agredir meu amigo. Esse sujeito claramente estava gostando do que fazia.

— Quando fui atacado no deserto, tinha ido até lá para cavar um buraco — contou Kurt, estremecendo de dor. Claramente se empenhou para falar tudo de uma vez para não apanhar mais. — Depois eu ia dizer ao rei que foi naquele lugar onde Úrsula e eu “encontramos” a coroa, dando a entender que o ladrão se arrependeu e abandonou o que furtou.

— Pena que eu apareci antes — zombava Zaluck, meneando a cabeça. — Decerto, vocês agora estariam se aproveitando da bondade de sua majestade. Que plano mais infeliz e sem propósito! Sabe o que você merece?!

A próxima chicotada foi a mais forte. Eu queria arrancar a cabeça desse sujeito. Senti o forte estalo que ele deu, arder dentro de mim. Talvez porque de algum modo esse tipo de coisa tenha sido uma parte infeliz da minha vivência.

Não me segurei.

Meu animal interior assumiu o lugar da razão. Coloquei pressão em minhas patas para em apenas um salto dar uma cabeçada no infeliz. Sobressaltado, ele caiu sobre montes de caixotes empilhados e cheios de poeira. Levantou-se no instante seguinte em posse de uma arma à laser. Disparou contra mim, mas eu desviei voando para a esquerda.

Zaluck então atirou para o alto, acertando o piso de madeira sobre nós. Pedaços caíram sobre mim e um deles acertou minha cabeça. Não me machuquei o bastante para cessar meus ataques, mas isso deixou Kurt furioso. Ele se transformou no lobo cinzento que era interiormente. Pulou no alienígena e arrancou a arma em sua posse com uma mordida. Jogou-a para Úrsula. Então me aproximei e ladeei o meu amigo, nós dois rosnando para o maldito.

Ele riu enquanto recuava.

— É realmente uma pena — balbuciou ele, trêmulo. A palma da mão estava estendida para nós, como que para impedir nosso avanço. — Sabem, eu tenho um localizador que foi ativado assim que fui jogado nos caixotes. Uso para emergências. Pode ter certeza que daqui a pouco os guardas do rei estarão aqui e será bem pior. A menos, é claro, que me deixem levá-los para sofrerem suas punições. Do contrário, serão sim levados até o castelo, com as patas quebradas ou pior. Sabemos o quanto os guardas reais conseguem ser cruéis com inimigos, certo?

Lancei um olhar de fúria no cinto que o alienígena usava. Havia um dispositivo piscando com a luz vermelha. Ou seja, não estava mentindo. Droga.

Sem escolha e, na busca de preservar meus amigos, voltei à minha forma comum. Kurt logo em seguida. Com um sorriso triunfal, Zaluck se reaproximou.  Nos prendeu com correntes anti-magia e nos levou até uma carruagem, que rumou direto para o castelo Swancraster. Úrsula não parava de chorar pelo caminho.

Não demorou para que estivéssemos diante do rei e da rainha. O alienígena nos empurrou e caímos de joelhos. Quando a princesa se pôs ao lado dos pais, senti como se um vento congelante percorresse todos os meus órgãos internos. O rei soube de tudo o que havia acontecido pela boca de Zaluck. Ouvi-lo, fazia parecer que meus amigos e eu éramos as piores pessoas do mundo.

A condenação logo orbitou no olhar profundo de nosso soberano. Paralelo a isso, alguma coisa que eu não sabia explicar cintilava no semblante da princesa, que passou a frente do pai antes que o rei desse seu veredito contra nós.

— Foi valorosa a serventia de Zaluck — disse ela. — No entanto, ainda não ouvimos o que Mia de Kall’mon tem a dizer. Afinal, eu a libertei para encontrar a coroa e desejo uma explicação dela.

— Com todo respeito, majestade — Zaluck se posicionava. — Ela é uma fêmea e, pior ainda, uma fêmea que acobertou inimigos da coroa e me atacou! Ela não tem direito à voz.

— Mas a princesa desse castelo tem autoridade para dar voz a quem ela quiser, sendo uma fêmea ou não — recrutou Valy, áspera. — Não repita esse menosprezo por gênero na minha frente ou será levado direto para o calabouço.

Zaluck empalideceu e recuou, de cabeça baixa. Os olhos da princesa faiscaram de encontro ao meu. Se eu não dissesse ou fizesse alguma coisa, tudo acabaria ali. E eu devia explicações à Valy, mais do que a qualquer um.

Sendo assim, levantei-me, inspirando toda a coragem que consegui. Muito foi explanado sobre o que Kurt e Úrsula fizeram, mas nada disseram sobre suas motivações por trás do “crime”. 

“… e sim, alteza, também achei o roubo um absurdo”, frisei, enquanto explicava. “Só que meus amigos não iam ficar com a coroa ou vendê-la. Eles fizeram o que fizeram por estarem desesperados. Há muita rigidez no modo como muitas famílias vivem, por aqui.”

— Então problemas de família justificam o ato deles? — indagou o rei, com severidade. — Vejo que está mesmo acobertando esses dois.

— Não! — exclamei. — Olha, eu sei que nada do que eu disse dá razão ao que fizeram, mas… uma vez o senhor discursou que o ato de realizar mudanças é o que faz mundos girarem em torno da sua estrela, lembra? Todas as famílias neste continente vivem do mesmo jeito faz séculos! E aposto que existem outras pessoas, além da Úrsula e do Kurt, que sofrem por causa disso. Eu mesma já sofri muito com essa questão.

O rei franziu a testa.

— Onde está querendo chegar, felina?

— Majestade, entre as metaferas, os machos precisam sempre estar prontos para uma batalha, do contrário, não merecem respeito. E pelo visto, fêmeas que não conseguem se transformar ou, ainda que se transformem, se não podem voar, são vistas como inúteis, até para a família. Esse pensamento soa tão antigo, mas tem gente que prefere continuar vivendo dessa forma! Em outros lugares, como nas cidades onde treinei, seres vivos são mais respeitados independente do sexo. Têm até direito de escolher o que querem para o próprio futuro!

O rei deu um suspiro longo.

— Bom, não posso negar que de alguma forma estamos um pouco… atrasados em algumas coisas — havia incômodo em sua voz. — Mas não posso interferir em modos de famílias cujas tradições vem dos tempos mais antigos. São particularidades.

— E se o rei incentivasse essas mudanças? — rebati. — Aposto que muitos que têm o senhor como reflexo prestariam atenção, e… talvez mudassem seu modo de pensar e agir! Episódios como o de hoje, dificilmente tornariam a acontecer pelo mesmo motivo.

O rei coçava sua barba ruiva, o olhar analítico perdido em algum lugar entre eu e os meus amigos. 

—Você parece ter pensado bastante no assunto — respondeu ele, num resmungo. — Se está tão certa disso, onde acha que, hipoteticamente, seu rei deveria agir para inspirar o povo a… mudar?

— Podia começar proibindo os pais de açoitarem as filhas a fim de que elas se transformem. Sei que essa metamorfose é importante, é a identidade da nossa raça. Só que a transformação pode acontecer sem a necessidade da força bruta em nossos corpos. 

Zaluck soltou uma risadinha debochada ao meu lado. 

Eu o ignorei.

— Então se sente livre para fazer piadas, bichana? — o rei endureceu a expressão. — Nenhuma transformação ocorre se não for pela dor. Todos sabem disso.

— Um momento! — Valy alteou a voz e todos se voltaram para ela. — Desejo que Mia de Kall’mon e seus amigos sejam liberados se ela estiver certa. Acho que tenho direito a isso.

O rei titubeou, em resposta. Era visível que ele não estava muito à vontade para concordar. Resmungou um pouco, mas depois de muito pensar, cedeu. Não pude deixar de sorrir com a atitude da princesa. Lancei um olhar de canto para Úrsula, que entendeu o recado. 

Ela se despiu e girou onde estava para que a vissem. O queixo rubro do rei foi caindo aos poucos. Mas ele se surpreendeu de fato quando Úrsula se transformou, comprovando a verdade que foi relatada. 

Copiosamente surpresa e maravilhada, Valy sorriu para o grande urso pardo que seus olhos focalizaram. Somente a partir disso eu tive a plena certeza de que tudo acabou bem, no final das contas.

— Mia de Kall’mon — o rei balançou sobre os pés, mantendo a compostura e evitando transparecer o óbvio: que ele estava encantado com o que viu. — Você e seus amigos estão livres. Já podem se retirar.

 

 

As fêmeas são mais fortes e habilidosas do que os machos, em se tratando de força física. Paralelo a isso, historicamente, sempre fomos coagidas por eles, por serem mais numerosos do que nós na sociedade. 

Nossas vozes foram silenciadas por muito tempo. Até os serviços que nos permitiam fazer, não possuíam tanta relevância, uma forma de nos colocar sempre no anonimato. Assim sendo, os machos passaram a ocupar o topo de uma hierarquia, afastando as fêmeas cada vez mais da possibilidade de um dia assumirem até mesmo a própria independência.

A consequência de tais costumes, resultou em machos alfa como o Sr. Grey, que sempre buscou se manter como fera dominante acima de qualquer coisa. Por muito tempo, achava-se que esse tipo de retrocesso jamais mudaria, mas para ser otimista, sempre acreditei que isso era questão de tempo.

E não é que eu estava certa?

Não que tudo tenha se transformado imediatamente. A mudança que notei foi nos pequenos detalhes. Após toda a confusão do roubo, e aí três dias se passaram, Kurt e Úrsula me contaram alegres o quanto a convivência deles com seus pais melhorou. 

Minha situação não era diferente.

“Sua mãe fez aquela torta de cogumelos que você gosta”, resmungou meu pai.

Era a forma dele de me pedir desculpas por ter sido tão grosseiro. 

— Minha gatinha manhosa — disse minha mãe enquanto me abraçava com carinho. — Nós amamos muito você, amamos mesmo!

Dona Abigail estava contente. Eu sabia que os pensamentos dela sobre meu futuro ainda eram os mesmos, mas de alguma forma, o orgulho que ela sentia por mim era tanto, que nada mais importava.

É meio confuso, eu sei. Mas isso se deve a princesa Valy, que divulgou à todo o reino que a coroa fora encontrada por Kurt Grey, o melhor ferreiro que o rei poderia ter, por Úrsula, que agora estava aprendendo a gerenciar o negócio dos pais e por mim: a guerreira ousada, como andavam me chamando.

De detenta, passei a ser uma das pessoas mais respeitadas do vilarejo; eu só queria ter visto a cara do meu pai quando ele soube. E é óbvio que eu não contei a verdade a ele ou à mamãe. Pelo menos por enquanto, eu queria manter minha paz garantida.

Por outro lado, Zaluck, o alienígena que capturou meus amigos e eu, ficou muito furioso por não receber os méritos derivados do serviço que prestou à princesa. Fora preso logo depois que Úrsula se transformou em urso. “Sua missão era somente trazer os culpados até aqui e não machucá-los. Passará dez dias preso por exceder a sua obrigação”, decretou Valy.

 

Dias foram passando. 

Embora tudo estivesse mais uma vez em paz, um pensamento vez ou outra martelava em minha mente: por quê a princesa quis que fossemos liberados e mentiu a todos sobre a história da coroa?

Podia ser só impressão, mas por um momento me pareceu que a ela não interessava quem era ou não culpado pelo roubo. Decidi então colher flores fora dos limites do vilarejo. E não, eu não gosto de flores, mas não eram para mim. 

Eu queria presentear a princesa para mostrar gratidão pela misteriosa (e bem-vinda) atitude que ela teve. E para minha surpresa, não precisei ir longe, quando já estava em posse do que fui buscar. Quando decidi que voaria até o castelo, a vi diante de mim. 

— São minhas favoritas — disse a princesa, encantada, sacudindo a cauda. — Sorte da pessoa que irá recebê-las. Elas só crescem desse lado do deserto.

— E-eram pra você — gaguejei constrangida. — Sabe, por tudo o que fez por mim e por meus amigos.

— Nossa. Obrigada, fico lisonjeada. Eu estava mesmo procurando você, para conversarmos. 

Arregalei os olhos.

— Sério? Tipo… nós duas vamos conversar de verdade?

— Claro. Queria dizer que assim que eu a vi sendo levada pelos guardas no dia da seleção, percebi que tínhamos nossas semelhanças. Imaginei que se você ficasse presa, culpada ou não, acabaria sem realizar o que eu sempre quis fazer.

Ruborizei.

— E o que é?

— Inspirar liberdade.

Refleti por alguns segundos.

Vendo que não respondi, ela continuou:

— Mia, eu sempre quis lutar como os soldados do meu pai, e até mesmo ir para as batalhas. Me sentir viva, o que é muito difícil quando se é obrigada a ficar sentada em um trono dia após dia. Todavia, como filha do rei, eu precisava dar o exemplo e ficar quieta. 

— Eu não imagino você lutando.

Ela riu.

— E eu não a culpo. Mas se me permite contar um segredo, eu treino com espadas quando ninguém está perto. E desejo verdadeiramente que um dia eu possa agir como quero sem me esconder. E sobre os conselhos que deu ao meu pai, ele está disposto a ajudar, mas sinceramente, acho que é mais fácil você alterar alguma coisa por aqui. Vejo esse tipo de determinação te envolvendo. E por isso, não me sinto culpada em te dar neste momento outra oportunidade para se tornar uma guarda real. E assim terá mais notoriedade.

Estremeci. 

Foi aquilo mesmo que ouvi?

— Sim, Mia — respondeu Valy ao meu olhar indagador. Encarou-me com mais seriedade. — Faremos outra seleção. Talvez, através da sua vida, outras metaferas que até hoje estavam no silêncio, soltem suas vozes para finalmente serem ouvidas. Acreditar na sua capacidade foi o que me fez querer te ajudar e também aos seus amigos. Pode me retribuir dando o seu melhor por seres como nós e por nosso reino. Conto com você.

 

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